Encontrei este livro numa cabine telefónica da Universidade de Évora, uma "cabine de leitura". O que costumava ser uma cabine telefónica é agora um lugar de partilha de livros em muitos lugares de Portugal, uma iniciativa onde os frequentadores podem também deixar livros usados para poderem ser usufruídos por outras pessoas.
Eu tive a sorte de encontrar este livro, que me agradou imenso. Espero devolvê-lo em breve, deixá-lo onde o encontrei e poder ir buscar outro. Um pretexto para voltar a Évora...
Luísa da Gama da Costa Gomes (Lisboa, 16 de Junho de 1954) é uma escritora, dramaturga e tradutora portuguesa (Wikipedia).
A Luísa Costa Gomes é a escritora portuguesa com quem mais me identifico. Lê-la - sejam os seus textos ou as suas entrevistas - é sempre uma delícia, sempre refrescante, sempre uma aprendizagem. Hoje, tem uma entrevista no «Público», pela Isabel Lucas, que recomendo muito. Tive a sorte de a ouvir ler um dos contos desta colectânea, na Snob, há uns meses, e foi dessa semente que nasceu o «Ler, Escrever e Contar», a rubrica mensal que agora ali co-organizo com a Joana Neves outra grande fã de contos. LCG é e será sempre uma inspiração, para a literatura e para a vida. Longa vida à sua lucidez e ao seu humor! Rita Canas Méndes en Facebook.
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Luísa Costa Gomes vive desde 1986 num bairro operário da Costa da Caparica (fonte: Publico.pt) |
Contos Outra Vez reúne, pela primeira vez, contos dispersos que foram sendo escritos e publicados entre 1984 e 1997. Integram-se ainda nesta antologia três contos inéditos: "Uma empresa espiritual", "Brandina ou O silêncio dos produtos" e "O Caso dos dois Juans" (https://www.luisacostagomes.org/contos-outra-vez.html). Grande Prémio de Conto 1997. Esta edição é de 2001 (Edições Cotovia, impressão em Espanha), e faz parte da Campanha de Promoção da Leitura De Volta aos Livros (Ministério da Cultura e Instituto Português do Livro e das Bibliotecas).
Esta é uma das histórias reunidas no livro: Os três homens aderem à revolução
Os três homens aderem à revolução
Há uns dias que acontecia ficarmos a fumar depois do almoço e deixarmos a conversa descair até adormecermos profundamente, cada um em seu canto. Hoje não foi diferente. O Harris preocupava-se cada vez mais com a imobilidade do imobiliário e nem eu próprio, que era o principal interessado, podia já suportar as minhas lamúrias sobre o preço do papel e a difícil arte da edição. O George adormecera de charuto em riste, mas nem eu nem o Harris nos dispusemos a fazer o que quer que fosse para lhe poupar o embaraço das consequências. Entreolhámo-nos em silêncio. Pareceu-me a certa altura que o George cantava no sono. A princípio dir-se-ia que ressonava apenas, mas a pouco e pouco fui discernindo uma espécie de padrão que se assemelhava a uma melodia, embora irreconhecível. A minha hipótese revelou-se acertada quando o George, ainda de olhos fechados, disse:
- Acordei hoje com esta música na cabeça e não consigo lembrar-me do que é.
A memória do Geourge já não é o que era, embora eu não me lembre muito bem de como ela era. Pedimos-lhe, sem entusiasmo desnecessário, que cantasse mais alto, o que ele fez, sem qualquer resultado. Desiludido, o Harris disse:
- É a rotina, embota a memoria.
- É bem verdade - disse eu-, todas as faculdades precisam do seu exercício. Se vivemos meramente de hábitos, realizamos todos os dias os mesmos gestos, dizemos as mesmas coisas como autómatos, de que serve termos memória? De que serve termos imaginação? A coisa envergonha-se até de existir e acaba por se apagar. Pensa: Como sou inútil! um mero armazém de velharias, sem qualquer préstimo!
Ficámos naquela sonolência mais uns minutos, até que o George disse:
- Estamos a precisar de...
- Uma mudança, já sei - concluiu o Harris, lembrado de outros tempos.
- Exercício - precisou o George. - Muito exercício.
Estávamos todos a pensar o mesmo, de maneira que o Harris se levantou e foi postar-se em frente do mapa-múndi que eu tinha pendurado na parede, atrás da secretária, numa bela moldura dourada.
- Precisamos de aventura, umas férias longe das modorras e com alguns imponderáveis - disse eu. - Há lá alguma coisa pior do que um fanático do imponderável!
- Um país exótico, confortável, mas exótico... - procurou o George.
Assentámos que, para lá dos Pirinéus já era suficientemente exótico; que, para aventura, bastava ultrapassá-los e sobreviver.
- África... - sonhou alto o Harris.
- Não é África, mas é quase. É quente, é pacífico, é hospitaleiro.
Levantámo-nos para ver a maravilha no mapa. Era um retângulozito inconspícuo que parecia recortado à tesoura na Península. Estava pintado de um esverdinhado triste, que ficava mal ao pé do azul do mar.
- Portugal? - perguntou o Harris, com algum alarme. - Não sei se cairá na classe dos países exóticos... - disse eu.
- Parece que há umas festas bárbaras em que picam os touros até à morte e depois distribuem os restos pelos espectadores - disse o Harris.
- Todos os países exóticos têm rituais cruéis e muita mosca. E neste lá havemos de ter deixado alguma réstrea de civilização - disse o Geourge.
O Harris perguntou: - E como é que eles se deslocam? Haverá comboios?
O George respondeu: - Tenho informações de que andam de burro com imensa dignidade.
Eu disse: - É um nobre animal, o burro. Infelizmente subestimado.
Ficámos a olhar o mapa, acabando os charutos.
- Umas férias tranquilas num país exótico - disse o Harris, rendido. - Só queria saber quanto é que isso nos vai custar.
- Há-de ser o país masi barato do mundo, estando como está longe de tudo. - Mas o argumento contrário também era, infelizmente verdadeiro.
- Uma calma aventura e o burro é um excelente exercício.
- E quando iremos? - perguntei.
Assentámos que havia de ser um Outubro, logo na primeira semana. Já não estava calor e ainda não fazia o frio desagradável dos países em que não chove decentemente. Mil novecentos e dez ia ser o ano da nossa segunda viagem ao Continente.
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